Arbitragem no século 21: de justiça artesanal a indústria oligopolista
Do século 20 para o 21 a arbitragem passou de uma Justiça privada “artesanal” para uma grande indústria com traços oligopolistas. A função de árbitro passou de um bico eventual para juristas renomados a uma profissão rentável cobiçada por estudantes, advogados e juízes. Sofre de baixa publicidade, distorções, parcialidade e conflitos de interesse. A arbitragem tem um encontro marcado com suas contradições.
Procedimentos arbitrais privados feitos a portas fechadas definem o destino de somas bilionárias em disputas societárias, comerciais e financeiras complexas. Interferem na sobrevivência de grandes empresas, direcionam negócios e afetam setores estratégicos. Em jogo está não só dinheiro, mas temas como desenvolvimento econômico e soberania nacional.
Os maiores sinais de saturação do modelo são os questionamentos judiciais. São comuns casos de arbitragens levadas à Justiça, muitas vezes por suspeita de parcialidade. Estudo do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) publicado ano passado concluiu que a uma a cada 12 arbitragens (8,4%) vai parar na Justiça. A judicialização da arbitragem é um problema global.
Críticas e reforma
No tribunal especializado em direito empresarial de Londres (Business and Property Cours) a arbitragem já é o segundo tema com maior volume de processos em trâmite. Foram 126 casos novos registrados no relatório de 2023. A arbitragem corresponde a 25% do movimento da Corte, ultrapassando disputas comerciais e contratuais comuns.
O direito inglês é adotado por 40% das arbitragens internacionais, o que torna seu questionamento um problema global. O assunto se tornou uma preocupação de Estado, e este ano o governo inglês encaminhou para o parlamento um projeto de reforma da Lei de Arbitragem (Arbitration Act, 1996) para proteger o setor.
“Este governo está empenhado em garantir que o Reino Unido seja líder mundial na resolução de litígios. A modernização da antiga lei de arbitragem irá torná-la mais rápida, mais barata e mais eficiente e consolidar a posição do Reino Unido em um setor valioso, que traz 2,5 bilhões de libras para a economia britânica todos os anos”, afirmou o ministro da Justiça do Reino Unido, Lord Ponsonby.
Conflitos de interesses
O principal ponto da reforma do Arbitration Act é garantir a imparcialidade dos árbitros. O texto trata do “dever de revelar”, pelo qual o árbitro fica obrigado a comunicar qualquer indício de conflito de interesses às partes. Trata-se de uma resposta a casos levados à Justiça nos quais há evidências de violação da imparcialidade do árbitro.
A indústria da arbitragem está em alerta desde o caso Halliburton vs Chubb, julgado pela Suprema Corte britânica em 2020. O julgamento foi uma oportunidade para os juízes da Suprema Corte passarem o recado de que as coisas não vão bem. O sistema foi acusado de tendência à parcialidade e ser propenso a distorções.
“Um árbitro é nomeado para atuar por uma ou ambas as partes na arbitragem. É remunerado pelas partes, e muitas vezes é financiado pela parte vencida. A nomeação como árbitro confere um benefício financeiro. Há muitos profissionais cuja subsistência depende da atuação como árbitros. Isso pode dar ao árbitro o interesse em evitar atos que alienem partes em uma arbitragem”, afirmou a decisão da Suprema Corte inglesa (Halliburton vs Chubb).
O que a Suprema Corte britânica reconheceu é que a arbitragem tende a ter problemas pois o árbitro é contratado e remunerado por quem ele julga. Assim, há todo o tipo de incentivo para que os árbitros se associem a um dos lados para tirar vantagem do outro. O que analistas têm cada vez mais percebido é que à medida em que a arbitragem se torna um grande negócio, o objetivo passa a ser fazer dinheiro, não fazer Justiça.
“Na verdade, quando estou representando um cliente em uma arbitragem, o que realmente procuro em um árbitro nomeado pela parte é alguém com a máxima predisposição em relação ao meu cliente, mas com a mínima aparência de parcialidade”, diz trecho citado no caso Halliburton vs Chubb.
Corrupção e fraude
Em 2023, a Alta Corte (High Court) empresarial da Inglaterra e Gales anulou uma arbitragem de US$ 11 bilhões contra o governo da Nigéria em meio a acusações de corrupção e fraude. A corte entendeu que a arbitragem estava flagrantemente mal fundamentada e era juridicamente insustentável, evidenciando que algum problema grave estava acontecendo.
“Os fatos e circunstâncias deste caso proporcionam uma oportunidade para considerar se o processo de arbitragem necessita de mais atenção quando o valor envolvido é tão grande e envolve o poder público. O risco é que a arbitragem como processo se torne menos confiável, menos capaz de encontrar bases jurídicas relevantes e mais vulnerável à fraude. Não basta ter uma corte arbitral com experiência e competência”, diz a sentença de Nigéria vs P&DI.
O resultado espalhou ondas sísmicas pelo mercado e passou o recado de que casos de alta complexidade, envolvendo cifras bilionárias e temas sensíveis, podem ser melhor resolvidos pelo Poder Judiciário. Na Justiça comum, disputas são resolvidas por juízes com estabilidade, remunerados pelo Estado, são amparadas por formalidades, garantias, salvaguardas, recursos, apelações e regras de publicidade e transparência inexistentes na arbitragem.
Não é óbvio que a arbitragem é a forma ideal de solução de qualquer tipo de disputa. Casos complexos de alto valor tendem a mobilizar interesses econômicos poderosos e ameaçar o funcionamento de um sistema mais frágil e vulnerável a interferências externas. O resultado são facilidades e incentivos para casos de oportunismo, manipulação e fraude.
De artesanato a indústria
A arbitragem sempre foi uma atividade “artesanal”, adotada ocasionalmente em disputas comerciais internacionais. Evolvia comumente grupos estrangeiros sem representação local, resolvendo conflitos em tribunais montados pontualmente em nome da praticidade e conveniência. Como árbitro, convidava-se aqui e ali algum jurista renomado para chancelar o resultado.
A situação mudou a partir dos anos 1990. A globalização e expansão dos fluxos comerciais e financeiros internacionais transformaram uma justiça privada de butique em uma grande indústria. A revista Global Arbitration News calcula que as dez maiores câmaras arbitrais do mundo movimentam mais de 7.000 processos ao ano.
International Chamber of Commerce (ICC) somava, em 2020, um total de 948 arbitragens e US$ 51 bilhões em disputa. A China International Economic and Trade Arbitration Commission (Cietac), tinha 3,6 mil arbitragens somando US$ 112 bilhões. No Brasil, a pesquisa Arbitragem em Números chegou a 1,1 mil casos em andamento nas oito principais câmaras arbitrais do país, movimentando R$ 55 bilhões em 2021 e R$ 39 bilhões em 2022.
Harakiri arbitral
No livro “Análise Econômica da função de árbitro”, de Bruno Guandalini, mostra que ao passar da fase artesanal para a industrial, a arbitragem reforçou incentivos que distorcem o resultado dos julgamentos. Um grande caso arbitral pode produzir honorários de milhões de dólares distribuídos entre árbitros e advogados, mobilizando interesses privados, cálculo financeiro e muita racionalidade econômica.
O resultado é a distorção do modelo. O árbitro profissional tende a evitar se indispor com partes que podem gerar mais negócios no futuro, tanto como árbitro como advogado. Dificilmente um árbitro profissional vai negar seguimento a uma causa, considerar o pedido inadmissível, declinar sua competência ou admitir sua suspeição. Isso seria, nos termos do autor, um “Harakiri arbitral”.
“Um árbitro que recusa a função numa grande arbitragem pratica uma espécie de ‘Harakiri arbitral’. Se um árbitro afirmar jurisdição sobre uma determinada disputa, ou considera uma determinada reclamação admissível, cria um emprego para si mesmo. Se fizer isso para toda uma série de disputas, contribuindo para formar certas doutrinas jurídicas, criará toda uma série de empregos”, diz Guandalini.
Reforma e regulação
O fato é que apesar de o mercado de arbitragem aparentemente livre, ele tem elevadas barreiras à entrada, alta concentração e traços oligopolistas. Algumas câmaras e árbitros centralizam a prestação de serviços e se especializam em temas e mercados específicos, como mercado de capitais, contratos comerciais, societários e prestação de serviços. Há barreiras de reputação e precedência, que criam “bolhas” oligopolistas e afastam novos concorrentes.
O fato é que a arbitragem entrou no século 21 com uma regulamentação do século 20. É necessário inovação e mudança paradigmas na forma como se escolhem os árbitros, se organizam as câmaras, se disciplina o mercado, e mais preocupação com temas como transparência, independência, isonomia e equidade.
Será preciso maior regulação. Se um sujeito abre um posto de gasolina ou uma padaria, precisará prestar contas a algum um órgão regulador ou controle de qualidade, como a Agência Nacional de Petróleo (ANP) ou a Vigilância Sanitária. Mas se abrir uma câmara de arbitragem, não precisa prestar contas a ninguém. O fato de a arbitragem ser uma indústria complexa, sensível, multibilionária e totalmente autorregulada não deixa de ser surpreendente.
Também é espantoso que tribunais privados compostos de julgadores indicados pelas partes e remunerados por empreitada sejam responsáveis por disputas complexas e valiosas. Um serviço de larga escala, com fluxos constantes de centenas ou milhares de processos ao ano pode muito bem ser estruturado em torno de profissionais dedicados, contratados e remunerados pelo próprio prestador.
O debate é global e as propostas estão na mesa. A indústria da arbitragem precisa de mudanças drásticas, não de reformas pontuais. O Estado, por sua vez, precisa ficar atento à preservação da soberania e do desenvolvimento nacional. O risco surge quanto a “Justiça privada” estende suas mãos sobre negócios, empresas e setores estratégicos, e tira da cartola soluções mirabolantes para fazer dinheiro.
Por Arthur Pinheiro Machado, especialista em Direito Financeiro.
Fonte: Conjur – 7 de outubro de 2024, 9h20
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