Como efeito da crise econômica que o Brasil vem experienciando em decorrência da pandemia causada pelo novo coronavírus, prevalece uma única certeza: a de que ninguém tem certeza de nada. Em meio a tantas inseguranças — desativação de empresas, demissões em massa e ausência de vacina para a Covid-19 —, a autocomposição se projeta como a forma mais eficaz para as partes contratantes solucionarem conflitos.
Caso se decida pela via tradicional, obstáculos práticos da busca pelo direito com a intervenção do Poder Judiciário não devem ser menosprezados. Extrai-se do último levantamento realizado pelo CNJ que há cerca de 80 milhões de processos tramitando na Justiça [1]. Em 2018, houve atenuação no volume de casos pendentes, reduzindo quase um milhão de processos judiciais [2], todavia, o tempo de tramitação dos processos continua extenso. Tais fatos somados à atual situação caótica, pois, lamentavelmente, a pandemia deverá elevar o já vultoso número de demandas judiciais, conduzem à reflexão sobre a possibilidade de adoção de meios alternativos para solução de conflitos.
No que aqui interessa, a instabilidade econômica já começou a afetar o setor de seguros. Questões como o aumento da inadimplência dos segurados, a perda de clientes e a alteração da sinistralidade em alguns segmentos têm colorido as inúmeras controvérsias relativas à interpretação das cláusulas dispostas nas apólices e condições gerais. Tendo em conta as circunstâncias que envolvem as especificidades da Justiça e a relevância dos seguros para a sociedade, considera-se de extrema importância a construção de uma nova cultura de solução de conflitos, isto é, uma cultura que objetive o benefício mútuo, o restabelecimento da confiança e, sempre que favorável às partes, a manutenção das relações contratuais.
O presente artigo possui como escopo analisar a utilização da mediação como meio de solução de conflitos no âmbito securitário, tema esse pouco explorado no Brasil. Antes, porém, será feita uma breve exposição do instituto da mediação e os seus benefícios. É o que segue.
I) Breve exposição do instituto da mediação e os seus benefícios “A mediação é fundamental, neste momento, para que possamos superar a crise”, proclamou o ministro José Otávio de Noronha. O presidente do STJ afirmou, ainda, terem sido julgados pela corte mais de 500 mil processos em 2019 e que nenhum Judiciário do mundo seria capaz de atender à enorme demanda atual. É notório que se vivencia tempos insólitos; nunca houve evento a desencadear impactos tão fortes nas relações contratuais e na economia como a difusão da Covid-19. Deveras, a mediação é uma ferramenta vital para impedir o congestionamento ainda maior da Justiça e, mais do que isso, muitas vezes apresenta-se como a melhor forma de solução de disputas, pois prioriza o diálogo em busca de um acordo que atenda aos interesses de todos os envolvidos [3].
Em termos normativos, a conciliação foi adotada pelo CPC de 1973 (correspondendo aos artigos 165 a 175 do CPC/2015) e a mediação foi instituída mais tarde, em 2015, pela Lei nº 13.140. A matéria progrediu em 2018 com a criação de programas pelo CNJ visando “à autocomposição de litígios e à pacificação social por meio da conciliação e da mediação” [4].
Apesar de recepcionados pelo ordenamento jurídico pátrio, esses métodos alternativos de solução de conflitos ainda são parcamente explorados. À guisa de ilustração, no ano de 2018, as sentenças homologatórias de acordo traduziram 0,9% do total de processos julgados [5]. Se, por um lado, esses números refletem uma cultura litigiosa ensinadas nas faculdades jurídicas e replicadas na prática, por outro, é imprescindível que os operadores do Direito percebam que, muitas das vezes, o Judiciário não é a via mais adequada — sobretudo em tempos de crise, como os atuais.
Quanto à aplicabilidade da mediação, ela é cabível aos casos em que a resolução de conflitos verse sobre direitos que são disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação, podendo ser empregada no todo ou em parte da controvérsia. Nesse último caso, quando as partes consentirem sobre direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve o acordo ser homologado em juízo (artigo 3º, §§1º e 2º, da Lei nº 13.140/2015). Em relação à forma de estabelecimento da mediação, no âmbito privado, as partes podem optar pela mediação ad hoc (diretamente com mediador capacitado) ou pela mediação institucional (contratando-se câmaras ou centros de mediação) para a condução do caso.
Sobre o procedimento e o exercício da profissão de mediador, a Lei nº 192/2006, da Romênia, determina o desenvolvimento da atividade a partir de alguns princípios perfeitamente harmoniosos com a Lei nº 13.140/2015. Cite-se: I) voluntariedade do procedimento, proibindo-se qualquer forma de coerção, pressão ou influência sobre as partes; II) confidencialidade, sobre informações e documentos dos quais se teve conhecimento durante a mediação, mesmo após finda a atuação no caso; III) imparcialidade e igualdade, a garantir o equilíbrio entre as partes; IV) neutralidade, cabendo ao mediador recusar os casos nos quais sua imparcialidade esteja comprometida; e V) informação prévia, cientificando-se às partes sobre o procedimento e seus efeitos [6].
As vantagens da mediação são muitas, especialmente no setor privado. Ressalta-se, sem pretensão de exaustão, as seguintes: I) o acordo formalizado entre as partes possui força de título executivo extrajudicial; II) o procedimento é célere; III) as partes têm sua privacidade assegurada (podendo fazer constar cláusula de confidencialidade), além de possuírem maior controle sobre o procedimento e o seu resultado; IV) os custos da mediação são mais baixos e previsíveis; e V) as partes têm autonomia para a escolha do mediador e, a qualquer tempo, podem decidir pela desistência e partir para o Poder Judiciário [7]. Ademais, a adoção desse meio alternativo colabora com a construção de boas relações, recompondo a confiança.
No Brasil, a demanda pela Justiça permanece alta e a cultura da mediação ainda é restrita. Com o estímulo do Judiciário, pode-se dar início à busca pelo meio alternativo de solução de conflitos na esfera privada, o que será benéfico a todos. Nesse sentido, demonstrar-se-á, na sequência, que a mediação deve ser implementada no setor securitário pátrio por variadas razões.
II)Utilização da mediação como meio de solução de conflitos no âmbito dos seguros Desde o início da pandemia, especialistas já vêm alertando sobre o fato de que o número de conflitos entre segurados e seguradoras promete se expandir nos próximos meses e anos. Thiago Junqueira, por exemplo, após examinar a discussão no âmbito do seguro de vida, ressalta ainda que“a cobertura de interrupção de negócios (lucros cessantes) nos seguros de riscos operacionais demonstra-se um terreno fértil para discussões jurídicas atinentes à Covid-19” [8].
No horizonte da saúde suplementar, antes mesmo da pandemia verificou-se crescimento significativo de demandas judiciais: 130%, de 2007 a 2017 (número muito superior ao aumento no total de processos judiciais em primeira instância no mesmo período, que correspondeu a 50%). Estados como São Paulo, Minas Gerais e Distrito Federal, bastante afetados pela Covid-19, já possuíam um altíssimo percentual de demandas judiciais no âmbito da saúde suplementar, se comparada à saúde pública, sendo, respectivamente, 86%, 75% e 88% [9].
Consoante pesquisa desenvolvida pelo Ibope, em 2019, quase metade dos beneficiários de planos de saúde aderiram ao serviço para se sentirem amparados [10], expectativas que são fortemente frustradas com a recusa de um atendimento ou serviço, resultando na quebra de confiança e em diversos conflitos judiciais. O número de beneficiários no país é expressivo, cerca de 48 milhões [11], o que poderá ocasionar — especialmente por se tratar de período pandêmico — em muitas novas demandas para a Justiça. À vista disso, o setor pode ser seriamente afetado com os percalços trazidos pela crise, muitos previstos e monitorados pela ANS e Susep, impondo-se reflexão sobre os meios alternativos de solução de conflitos a objetivar tanto a manutenção dos contratos como a preservação da reputação das seguradoras.
Apesar de a mediação ser o meio mais adequado para a solução de inúmeros conflitos no ramo dos seguros, são poucos os locais no Brasil que já o utilizam. Em maio de 2018, o Sindicato dos Corretores de Seguros no Estado de São Paulo (Sincor-SP), visando à sua implementação no campo dos seguros, introduziu a Câmara de Mediação e Conciliação Sincor-SP [12]. Na Bahia, a Câmara de Conciliação da Saúde do Estado organizou um sistema de mediação que obteve excelentes resultados, diminuindo a “judicialização desnecessária” e evitando em torno de 80% das demandas judiciais. Em levantamento realizado pelo CNJ, os principais processos em primeira instância dizem respeito a “plano de saúde” (34,05%), “seguro” (23,77%), “saúde” (13,23%) e “tratamento médico-hospitalar e/ou fornecimento de medicamentos” (8,76%) [13], demonstrando a relevância da questão.
No ramo de seguros de automóvel, o terceiro maior segmento do setor — que, todavia, teve redução de 7,5% nos últimos meses [14] —, já se sustentava ser a mediação a melhor maneira de se solucionar conflitos. O instituto, virtualmente aplicável em muitos casos, é rápido e evita prejuízos financeiros e à reputação das seguradoras. Considera-se, entretanto, necessário fazer constar cláusula dispondo sobre o procedimento nas apólices para que ele se torne mais usual [15].
Em 17 de julho de 2020, o CNJ aprovou recomendação com o propósito de preparar o Judiciário para os pedidos de falência e recuperação judicial que virão no período pós-pandemia. Apurou-se que, desde o início da disseminação do novo coronavírus, 522 mil empresas encerraram suas atividades, além das outras tantas que reduziram quadro de funcionários. Com isso, estima-se que haverá ajuizamento de muitas ações pretendendo o cumprimento de obrigações não adimplidas. Nesse cenário, o CNJ orientou aos Tribunais que implementem meios alternativos de solução de conflitos, entre os quais, a mediação, para causas empresariais de qualquer natureza e valor, podendo ser realizada de forma virtual [16]. A recomendação do conselho, que não poderia ser mais oportuna, busca endereçar questões complicadas que se avizinham.
Especificamente sobre o setor de seguros, é importante compreender que a “judicialização automática” de sinistros negados representa uma ameaça ao equilíbrio contratual, geradora de riscos para seguradoras e segurados, pois, quanto maiores os prejuízos sofridos pelas seguradoras, mais altos os preços dos prêmios. Em ações judiciais, por vezes, há declaração de nulidade de cláusulas fundamentada por interpretações que não coadunam com a lógica mutualista, esvaziando-se, dessa forma, o “conteúdo negocial” embutido no contrato [17]. Vista a questão sob outro enfoque, a tratativa diretamente com a seguradora, que normalmente possui mais experiência em relação à negociação, deixa o segurado em posição vulnerável, por isso, o mediador serve como aquele que traz nivelamento entre as partes.
A pretensão de se estabelecer proteção ao contrato de seguro de maneira mais equilibrada deve estar acompanhada da ponderação sobre o uso de outros meios de solução de disputas e a mediação, além de ser muito mais célere, garantir a privacidade das partes, possuir custos mais baixos e previsíveis, e pacificar a disputa com benefício de todos (preservando, com isso, as relações contratuais), evita, também, o abarrotamento do Judiciário, obtendo êxito no cumprimento de 99% dos acordos homologados.
Impõe-se, por fim, enfatizar que, com a mesma força e empenho que se busca combater a pandemia, deve-se rechaçar a judicialização desnecessária. Neste momento de crise, salta aos olhos a necessidade de transmutação do ser humano, em muitos aspectos. Não seria essa, então, uma oportunidade de revermos nossas formas de solução de conflitos?
[1] CNJ. Justiça em Números 2019/Conselho Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2019. p. 79.
[17] SILVA, Vivien Lys Porto Ferreira da. Conquista da consciência do mercado segurador em novos caminhos na gestão dos seus conflitos. In: Aspectos jurídicos dos contratos de seguro. Angélica Carlini; Pery Saraiva Neto (organizadores). Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2019. pp. 381-394.
Por Thaís Dias David, advogada, pós-graduada em Ciências Criminais pela UCAM e coordenadora jurídica no escritório Antunes Mascarenhas Advogados, no Rio de Janeiro.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 24 de julho de 2020, 14h34
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